25.2.07

TELEANÁLISE

A Tarde, domingo, 18 de fevereiro de 2007


AS MARCAS DA DIFERENÇA

por MALU FONTES


“Camarote 2222/Aqui é o novo endereço/torça para ser convidado/até olhar de fora vale a pena”. Adornadas por desenhos alusivos a motivos carnavalescos e estampando a reluzente marca de refrigerantes que figura como uma das principais patrocinadoras do camarote, as frases acima parecem convidar a duas leituras igualmente irresistíveis levando em conta os contextos sociais e políticos. A primeira delas é que essas frases curtinhas, publicitárias, despretensiosas, são, na verdade uma negação arrivista daquilo que diz a logomarca do Governo Federal, governo, inclusive, que tem como ministro da Cultura o principal anfitrião do Camarote 2222, Gilberto Gil. Para quem não lembra, a logomarca do governo estampa: Brasil/Um país de todos/Governo Federal).


Pode-se dizer que inferência apontando para a negação do slogan do governo pelas frases do camarote é um ponto de vista subjetivo, uma questão de leitura pessoal, etc. e tal. Mas a segunda leitura tem como perspectiva o bom senso. Em um país em que só os alienados não enxergam que vivemos sob a ameaça da convulsão social e da intolerância entre as classes sociais do alto e da base da pirâmide, soa no mínimo inadequado um espaço festivo montado em torno de um ministro de estado promover a distinção social, a diferença, a característica de “para poucos” que se quer imprimir ao tal camarote e que de fato o caracteriza.


EMPADAS - As frases curtinhas não querem dizer outra coisa senão reforçar o quanto aquele espaço é para privilegiados que tenham a sorte (que passa pela condição sócio-econônica, estética ou pelo viés da fama) de serem escolhidos. Assinala, embora com alguma sutileza, que a ralé sem chance de torcer para ser convidada deve se dar por muito feliz em poder, do chão da rua, olhar para cima e admirar o olimpo e os olimpianos. Quem sabe até dá para ganhar uma latinha de cerveja quente ou um restinho de empadas jogadas generosamente lá de cima, como bem diz Carlinhos Brown em entrevista ilustrativa sobre o Carnaval de Salvador em A Tarde do último domingo.


Os camarotes se tornaram onipresentes no Carnaval de Salvador e representam hoje o próprio Brown chamou o ano passado de apartheid da festa, juntamente com as cordas que separam o povo e os blocos dos grandes artistas da festa. A camarotização tem como principais referências justamente os camarotes Expresso 2222, organizado pela mulher do ministro, Flora Gil, e o de Daniela Mercury, organizado pela promoter mais incensada da Bahia, Lícia Fábio. O primeiro está ancorado em R$ 2,5 milhões em cotas de patrocínio levantadas entre marcas líderes do mercado e o segundo em R$ 2 milhões.


TAPA - As marcas que bancam esses custos querem visibilidade em imagens na TV durante a festa, fotos, notas e matérias na imprensa local, nacional e na Internet. Por isso a lógica é só convidar gente interessante (geralmente gente famosa, influente, descolada ou rica). À revista Piauí, Flora Gil definiu o perfil de seus convidados: “convido puta, viado, artista, baiana de candomblé, tudo”. Deus sabe o que cabe nesse tudo, mas a mesma revista dá uma opção de resposta sobre quem é bem vindo nos camarotes vips:”é para cliente, gostosa e famosa”, diz o dono da AmBev, Paulo Lemann, patrocinador de 9 entre cada 10 camarotes desses cujas camisas são disputadas a tapa nos bastidores do high society baiano.


O fato é que em uma cidade em que os desinteressantes, segundo a semântica da gramática dos camarotes, são cada vez mais empurrados para os becos com cheiro de xixi ou se contentam em ficar olhando para cima para ver os privilegiados, são ilustrativas as frases de efeito da fachada do camarote onde o ministro receberá seus convidados. Nesse contexto, merece aplausos a iniciativa do mesmo Carlinhos Brown que fala em apartheid na festa. Depois do Camarote Andante, este ano uma das marcas da festa é o seu Bloco Pipocão.


Em um Carnaval que caminha a passos largos acentuando as desigualdades entre as pessoas que dele participam, qualquer iniciativa que contemple os sem abadá e sem camarote soam como formas de oxigenar o modelo da festa e servem para distinguir a condição de artista da condição de mero cantor de bloco ou de trio. Mas já que é Carnaval, vamos fingir que tudo é festa e criatividade, inclusive músicas que transformam até Deus numa persona poética abilolada. Com o caos do mundo transbordando, quem foi que disse que Deus pode parar para namorar, na beira do mar, ao mesmo tempo em que desenha gente perfeitinha, num sinal que nem mesmo sua suposta namorada merece sua atenção? Socorra-nos, Deus!


Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA.