10.1.07

Censura cega

Desembargador paulista censura YouTube sem querer
por Priscyla Costa e Aline Pinheiro

O Brasil ganhou os holofotes da imprensa mundial no último final de semana. O motivo foi a determinação judicial para bloquear o acesso dos internautas brasileiros ao site YouTube, um canal da internet especializado em divulgar vídeos. A punição foi provocada pela suposta recusa do site em tirar do ar o vídeo que exibe cenas de ardente paixão da modelo Daniela Cicarelli e do empresário Renato Malzoni Filho, namorando numa praia espanhola.

A interdição do acesso à internet coloca o Brasil na companhia de países como China, Cuba e Irã, que não se destacam pelo apreço à democracia e à liberdade de imprensa. A maneira confusa como se formalizou a proibição revela a falta de entendimento da Justiça para atuar em questões que envolvam novidades tecnológicas como a internet.

A situação mostra ainda a inutilidade de se tentar impor medidas unilaterais de controle sobre a internet, que tem como uma de suas características fundamentais a falta de controles. A proibição de acesso ao YouTube, onde por sinal o vídeo já não se acha mais em exibição, não impediu que quem quisesse pudesse ver as cenas picantes de sexo implícito do casal nas centenas de outros sites que replicaram a peça.

Outra questão é a da territorialidade. Como a Justiça brasileira vai alcançar e impor suas decisões a sites da internet que podem ser acessados por brasileiros mas cuja administração está baseada em outros países. A única maneira de se obter algum sucesso é mediante a negociação.

Em nota enviada ao jornal O Globo, porta-vozes do YouTube esclareceram que o portal, criado por americanos, está subordinado às leis dos Estados Unidos. Como tem audiência-global, “se esforça para manter uma comunidade em que pessoas de todo mundo possam compartilhar vídeos de forma segura, dentro da lei”. O portal já bloqueou em seus servidores o acesso ao vídeo, mas o filme erótico ainda pode ser visto em blogs e sites de troca de dados.

O YouTube, que recentemente foi adquirido pela Google Inc., dona da mais importante ferramenta de busca na internet, bem que tentou atender à determinação da Justiça brasileira. No momento em que esta reportagem era escrita, o vídeo famoso estava fora da programação do YouTube. Mas no momento em que este texto estiver sendo lido, já poderá estar de volta.

Isto porque o sucesso do site está justamente na fórmula que permite a qualquer pessoa em qualquer lugar do mundo divulgar na internet o seu próprio vídeo. O site tem uma política de privacidade que proíbe a publicação de material com conteúdo ofensivos de modo geral e exerce uma vigilância para eliminar material impróprio. O que permite um controle apenas relativo, já que a observância estrita da regra de bom comportamento depende de cada um dos seus usuários.

Confusão em cadeia

A ordem de bloqueio do site partiu do desembargador Ênio Santarelli Zuliani, da 4ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo. Na quarta-feira (3/1), o desembargador concedeu a liminar porque o site não teria atendido decisão anterior do próprio TJ paulista, que determinava que o vídeo de Cicarelli fosse retirado do ar.

O que está escrito na decisão do desembargador, no entanto, é diferente do que ele quis dizer. Zuliani, por meio da assessoria de imprensa do TJ, explicou que determinou tão somente o bloqueio do acesso ao vídeo de Cicarelli, e não ao conteúdo de todo o site. Mas, no papel, ele vetou o acesso ao site. E como o que prevalece é a decisão nos autos, a Brasil Telecom e a Telefônica já foram notificadas. A primeira já bloqueou o acesso ao YouTube e a Telefônica, por meio de sua assessoria de imprensa, informou que está tomando as providências para bloquear o acesso ao site.

Para tomar sua decisão, o desembargador fez uma consulta a especialistas em internet. O perito Paulo César Breim, autor de um dos laudos que fundamenta a decisão, explica que as medidas apontadas por ele são mesmo para tirar o site do ar. “É possível bloquear o acesso apenas ao vídeo, tarefa mais complicada. Mas não foi isso que foi pedido”, diz. O desembargador sustenta que sua intenção era de bloquear apenas o vídeo, mas em sua decisão deu ordens para bloquear todo o site.

Para que o bloqueio total do YouTube se compete, a ordem judicial deverá ser apresentada às cinco operadoras dos troncos de conexão com a rede mundial de computadores no Brasil, os chamados backbone. Além da Brasil Telecom e da Telefônica, também fazem essa ligação a Telecom Itália, a Embratel e a Global Crossing. A Telecom Italia e a Embratel não tinham sido notificadas para fazer o bloqueio até a tarde desta segunda-feira (8/1). A Global Crossing não foi encontrada pela Consultor Jurídico.

Discussão jurídica

Fora a discussão técnica sobre a possibilidade de retirar do ar parte ou todo o conteúdo de sites hospedados no exterior, a decisão do desembargador paulista também levou à discussão jurídica sobre o assunto. Para uns, a Justiça brasileira pode sim bloquear o acesso a site estrangeiro que infrinja a lei brasileira. Para outros, não.

O advogado Renato Ópice Blum faz parte da primeira corrente. Ele considera que, se houver pedido específico para o bloqueio do acesso, a Justiça pode atendê-lo. Ele explica que a Justiça brasileira também pode bloquear o acesso do site para um determinado público, desde que seja respeitado o devido processo legal. O fundamento desse entendimento, de acordo com Blum, está no artigo 461, parágrafo 5º, do Código de Processo Civil.

O dispositivo legal diz: “na ação que tenha por objeto o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer, o juiz concederá a tutela específica da obrigação ou, se procedente o pedido, determinará providências que assegurem o resultado prático equivalente ao do adimplemento para a efetivação da tutela específica ou a obtenção do resultado prático equivalente, poderá o juiz, de ofício ou a requerimento, determinar as medidas necessárias, tais como a imposição de multa por tempo de atraso, busca e apreensão, remoção de pessoas e coisas, desfazimento de obras e impedimento de atividade nociva, se necessário com requisição de força policial”.

Outro artigo do CPC que pode fundamentar a decisão é o 20: “salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da Justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais”.

Para Ópice Blum, os internautas que não estiverem conseguindo acessar o site não podem alegar que estão sendo prejudicados. “A Brasil Telecom (empresa que já bloqueou o acesso ao YouTube) continua oferecendo o acesso à internet, a conexão, que é o serviço em si. E quanto ao bloqueio, há cumprimento de ordem judicial, que ainda pode ser questionada por recursos específicos.”

A advogada Patrícia Peck Pinheiro divide a mesma opinião. “A Justiça Brasileira pode determinar o bloqueio de um endereço de IP ou domínio se o registro for considerado como ilícito ou contrário às leis brasileiras. Este bloqueio pode ser feito pelo Brasil”, diz. “Neste caso, as empresas que cuidam do backbone (Brasil Telecom, Telefônica, Telecom Itália, Global Crossing e Embratel) bloqueiam o acesso em suas bases e assim os usuários não entram mais no endereço eletrônico. Esta medida tem sido solicitada especialmente no combate a ambientes de prática de crimes eletrônicos, pirataria, fraude eletrônica.”

Quanto aos usuários em geral, Patrícia Peck entende que não há dano. “O usuário não está acima da lei. Ao contrário. Cabe a empresa, no caso o YouTube, recorrer da decisão. Pode até justificar que seus usuários serão prejudicados, mas a Justiça pode entender pela proteção do bem público, em detrimento de alguns.”

Omar Kaminski, especialista em Direito da Informática, encabeça a segunda corrente, que considera abusivo o bloqueio do site. “O bloqueio desastrado feriu o direito de acesso às informações do YouTube de forma generalizada, e não resolveu o problema. São iniciativas como essas que podem acabar com a internet como conhecemos.”

No caso Cicarelli, entra em jogo a questão da liberdade de expressão em contraposição ao direito à privacidade, mas esta é outra história e que já é discutida há tempos em relação a outras formas de manifestação do pensamento como a imprensa escrita e a televisão.

De qualquer forma, continua causando espécie que por conta de um conteúdo específico — o vídeo de Cicarelli com alguns poucos minutos de duração — seja bloqueado todo um site — o YouTube com seus milhares de vídeos e sua proposta de interação ampla, geral e irrestrita. Em um dos muitos comentários postados na internet a respeito do caso envolvendo a modelo e o site de vídeos, um leitor faz a pergunta que parece mais adequada: “quem deve sair do Brasil, a Cicarelli ou o YouTube?”.

Revista Consultor Jurídico, 8 de janeiro de 2007

Fonte aqui

Nenhum comentário: